top of page

BOHUKAY E O DRAGÃO

Em Dois Montes havia uma casa conhecida como Favo de Mel, propriedade da viúva Menka, maldosamente apelidada Favo de Mel devido ao seu temperamento nem um pouco doce. Após a morte de seu terceiro marido, a senhora Menka transformara sua casa em um próspero estabelecimento, onde negociava verduras, servia bebidas e oferecia pouso a viajantes.

 

O cliente mais leal da Favo de Mel era o velho Bohukay. Na aparência, era um típico guerreiro daqueles que vagavam pela região semiárida do Caldeirão, vivendo da caça, da bandidagem ou da criação de animais mirrados. Bohukay era um homem baixo, de musculatura rija e esguia, queimado pelo sol, sempre vestindo trajes justos de couro ricamente decorados com fitas coloridas e berloques. Mas Bohukay era tudo menos típico.

 

Muitas vezes Menka pensou em escorraçá-lo de sua hospedaria, já que ele nunca lhe pagou por um petisco sequer, mas havia tantos clientes que vinham ao Favo de Mel apenas para ouvir as histórias de Bohukay — tantos que ali ficavam hospedados e que pagavam rodadas sem fim para manter o velho falando — que ela decidiu que ele era uma atração valiosa. Especialmente porque a única outra atração que ela tinha era seu velho papagaio, treinado para falar palavrões e insultar seu marido quando este ainda era vivo.

 

҉

 

— Com sua permissão, senhora. Trouxemos as quinze lhamas encomendadas — disse um viajante à entrada do grande prédio de tijolos crus. Posso lhe garantir que são da melhor procedência. Podemos entrar para passar a noite? Foi uma viagem de cinco dias.

 

Ele e seus companheiros eram estrangeiros, certamente do Altiplano, a julgar por suas túnicas e por seus modos obsequiosos.

 

— Entrem logo! — disse ela. — Tem uma fila atrás de vocês!

 

Os dez estrangeiros entraram apressadamente e espremeram-se em um canto. Não havia mais esteiras nem banquinhos, de modo que sentaram-se no chão de terra batida, como a maioria das pessoas ali dentro. Logo avistaram, no centro do salão, em um banco mais alto, o velho Bohukay. Mesmo eles, que eram de outro país, conheciam suas histórias.

 

— É ele, então?

 

Uma mocinha passou com uma bandeja de madeira repleta de tacinhas de cerâmica.

 

— Em carne e osso, senhor. Pulque? Dois copos por um grão de cacau.

 

Era um preço salgado, mas o rapaz desembolsou cinco grãos em troca de bebidas para todos de sua companhia. Acompanhou os movimentos da moça com algum fascínio enquanto ela retornava à cozinha. Em seu país, as mulheres não andavam de seios nus; os movimentos da garota ressaltavam o desenho sensual de seu corpo. O velho papagaio da senhora Favo de Mel logo pousou em seu ombro, causando escândalo.

 

— Cróó! Não é pro seu bico! Cróó!

 

Todos em volta riram do embaraço do companheiro, então voltaram suas atenções para o homem no centro.

 

— O que desejam ouvir agora, meus senhores? — disse Bohukay. Sua voz, com efeito, era linda para um homem daquela idade, e ele falava de forma cadenciada, fazendo gestos amplos e teatrais enquanto se apresentava.

 

— Senhor! Senhor! — disse um menino empolgado. — Conte-nos de quando matou a preguiça-de-chão com as mãos nuas.

 

— Não, não, essa é velha já! Queremos ouvir da vez que o senhor se esgueirou no harém do Capitão de Rocha Santa!

 

— Ora essa, não posso contar essa história hoje, meu rapaz! Não viu que há ilustres visitantes do povo wayar entre nós? — disse ele, acenando respeitosamente para os estrangeiros. Eles responderam com um gesto de reverência. — Não quero que eles pensem que nós, burus, somos uns safados e uns cafajestes desavergonhados.

 

— Cróó! Cafajeste! Safado! — crocitou o papagaio. — Não vale o que come!

 

Bohukay odiava aquele papagaio, sempre disputando a atenção do público com ele. Mas, de modo geral, a clientela achava graça no animal de boca suja, então o velho contador de histórias apenas riu diplomaticamente e retomou:

 

— Muito bem, vou então contar de quando enfrentei a serpente.

 

A plateia emitiu apupos de concordância. Até mesmo os estrangeiros conheciam aquela narrativa.

Ele se aprumou, limpou a garganta e se levantou para cantar.

 

Fui pois, até os confins do Caldeirão,

Só escudo de couro e lança na mão,

Salvar a linda menina da provação,

Prisioneira que era, do vil Dragão!

 

Grande, diziam, era o ser amaldiçoado,

Besta que era, todo blindado, todo escamado,

Comprido, forte, feroz e mal-intencionado,

Último filho de Iká, tinha de ser derrotado!

 

A plateia apupou novamente. Os burus acreditavam que os deuses haviam criado seu país a partir do sangue da maligna Iká, uma serpente gigantesca. Eles também acreditavam que, em um passado recente, alguns dos filhotes de Iká haviam vagado por suas terras, e que talvez ainda houvessem remanescentes vivendo no subsolo, esperando para serem exterminados por heróis como Bohukay.

 

— Cróó! Mentiroso! Não vale o que come! Cróó!

 

Felizmente, o público estava envolvido o bastante para não dar atenção ao papagaio. Bohukay limpou a garganta, tomou um gole de pulque e retomou sua cantoria:

 

Maldoso que era, o ser amaldiçoado,

A bela moça tinha ele sequestrado,

Linda que era, como o mais belo brocado,

Rosto mais lindo, jamais foi encontrado.

 

Por doze léguas caminhei, sem parar,

Cansado, até o mais maligno lugar,

Coragem precisava, por valor, provar,

E àquela donzela, por certo, salvar!

 

— Cróó! Queria era dormir com ela, isso sim! Cróó!

 

Desta vez o público não conteve o riso e os apupos. Diplomático, como sempre, Bohukay prosseguiu.

 

Então cheguei ao covil do rastejante!

Era alto e escuro, e o fedor penetrante.

E lá estava a donzela, que humilhante,

Prisioneira da besta de voz trovejante!

 

“Venha cá”, disse a besta, “eu lhe rogo.”

“Venha cá, mas venha logo!”

 

“Venha você”, disse eu, “venha com confiança.”

“Venha cá para a ponta da minha lança!”

 

A plateia explodiu em apupos diante da bravata do guerreiro. Até mesmo o papagaio de boca suja crocitou em seu apoio:

 

— Cróó! Viva! Cróó!

 

Raaaaaaaassssssssssshá!

Fez a besta, ao se arrastar!

Raaaaaaaassssssssssshá!

Fez a besta, ao saltar!

 

E dancei no escuro com pujança,

Pois a luta é uma dança,

Uma dança em honra da matança,

Uma dança dançada com a lança.

 

Raaaaaaaassssssssssshá!

Fez a besta ao dar o bote!

Raaaaaaaassssssssssshá!

Do primeiro ao terceiro golpe!

 

E assim fez a besta inclemente,

Quando trespassei o coração ardente,

Seu corpo, ruína impotente,

Destruída pela por lança refulgente.

 

Justiçada a besta da escuridão,

Tomei gentil donzela pela mão,

Para tirar-lhe daquela danação

E levá-la a um gentil rincão!

 

— Cróó! Queria era dormir com ela, isso sim! Cróó!

 

Em uníssono, todos na hospedaria bradaram louvores ao bravo guerreiros, erguendo ao alto suas taças de pulque, cerveja de milho e vinho de palmeira. Era uma bela história.

 

No dia seguinte, os estrangeiros se arrumaram para partir. Não precisaram pagar pela hospedagem, pois a velha Menka viu que as lhamas trazidas por eles eram realmente da melhor procedência, e pagou generosamente pelos animais com bons produtos de sua despensa: conservas de frutas, especiarias e ervas medicinais. Com a bagagem atada às costas, o jovem líder da companhia comentou:

 

— Agradeço pela estadia, senhora. Foi uma noite maravilhosa, e o senhor Bohukay é mesmo uma lenda viva!

Menka, fazendo jus ao apelido que lhe deram por ironia, gargalhou e cuspiu para o lado.

 

— Senhora?

 

— Moleque, se você acreditou em uma só palavra dessa história, o seu cérebro deve ser ainda menor que o seu pintinho.

 

— Pintinho! — repetiu o papagaio pousado no ombro da dona.

 

Os estrangeiros se olharam. Fazia sentido que o papagaio fosse assim. Como dizia um ditado do Altiplano: a fruta não cai longe do pé.

bottom of page