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CORPO FECHADO

Ikon acordou com as gargalhadas roucas. Olhou em volta em busca de seus companheiros, mas havia apenas ruína: mortos em cima de mortos, couro ensanguentado, lanças e escudos partidos. A vinte passos dali, a casa grande da aldeia jazia parcialmente desabada, uma pilha de restos fumegantes de madeira e folhas secas de palmeira. Guerreiros inimigos vasculhavam os cadáveres em busca do que saquear: facas de bronze, lanças em bom estado, joias de concha-da-ilhas, odres de bebida.

 

Perdemos, pensou Ikon, como é possível? Sou o único sobrevivente?

 

— Ei, rapazes, vejam só o que eu achei! Estava escondida no meio do mato! Firme e redondinha! — disse um dos guerreiros, arrancando Ikon de seu torpor. O guerreiro estava arrastando uma jovem pelo braço e pelos cabelos. Ela gritava e esperneava, não obstante o homem tentasse dominá-la pela força. — Vamos, me ajudem aqui! Essa está bem viva!

 

Mulheres, pensou Ikon, sempre as maiores vítimas de qualquer guerra.

 

Ikon marchara até ali em nome de seu rei, o rei de Buru, a maior das três ilhas situadas no Delta, como os Povos Antigos chamavam a foz do Grande Rio. O rio ali se dividia em vários braços menores, separando os três países: Paruná, Buru e Iumuná. Buru era a ilha mais central do conjunto, não apenas do ponto de vista da geografia, mas também da cultura. Era a única que possuía um governante supremo, a única que possuía um exército.

 

Os burus tinham uma relação complicada com seus vizinhos da ilha a oeste, os paruná. Paruná era tão árida quanto Buru, mas seu solo pedregoso a tornava ainda mais infértil e desagradável para a vida humana. Vivendo principalmente da pesca e do comercio com os vizinhos, muitos parunás faziam incursões ocasionais nas terras burus, saqueando suas lavouras e despensas.

 

E embora falassem praticamente a mesma língua que os vizinhos, eram bárbaros. Sua aparência indicava isso — sua nudez, seu modo de lutar, e o fato de, ao contrário de todos os seres vivos providos de alma, possuírem uma invulgar camada de pelos cobrindo seus corpos. Não chegavam a ser peludos como macacos, mas o suficiente para terem uma aparência insólita: uma suave penugem castanha, preta ou ruiva, quase invisível, sobre os ombros, as costas, as coxas e as nádegas, que se concentrava em chumaços cerrados ao alcançar a nuca, os antebraços, o peito e a virilha.

 

Como as tribos parunás não possuíam um comando unificado e lutavam constantemente entre si, os reis burus sabiam que, para manter uma convivência minimamente estável, deviam aceitar algumas daquelas tribos como suas aliadas, fornecendo a elas apoio militar em tempos de necessidade. As tribos inimigas destas seriam suas inimigas também. Assim, como ocorria todo início de verão, o rei enviou trinta soldados para guardar a aldeia de Úho. Entre eles, Ikon.

 

Andavam em ordem, bem equipados, com couraças vistosamente decoradas de couro de bisão, gibões ricos em bordados, chapéus, luvas, botas, aventais e perneiras de couro de veado. Carregavam escudos redondos e lanças com cabos de embiriba e pontas reluzentes de cobre ou bronze polido. Os parunás, por outro lado, andavam nus, exceto pelos adornos de palha, lascas de concha e miçangas de coral, cada homem armado apenas com dois bastões de madeira: um tacape largo, de pá achatada e bordas cortantes, usado para atacar, e um cilíndrico, mais espesso na ponta, que servia para aparar os golpes do armamento inimigo.

 

Justamente porque o armamento dos parunás parecia tão parco e primitivo — e também porque precisava guardar seus próprios domínios — o rei buru acreditava que poucas dezenas de soldados bastavam para defender seus aliados. E por muitos anos, poucas dezenas bastaram. Mas desastres sempre acontecem quando são menos esperados, e os inimigos de Úho já a espreitavam havia dias. Quando os burus se aproximavam da aldeia, mal tiveram tempo para se posicionar; seus oponentes fecharam sobre eles como nuvens de tempestade. Ikon caiu logo no início da luta, encoberto pelos cadáveres de dois velhos amigos. Mais tarde, vasculharam seu corpo e julgaram-no morto, não retirando dele mais que um anel de cobre que tinha nos dedos.

 

E ele sentiu falta do anel quando acordou. Havia ganho o anel de seu pai.

 

Vergonha, pensou. Não... não vergonha... Guerra. Guerra! Estão loucos se acham que podem sair daqui vitoriosos tendo deixado sequer um buru vivo!

 

Empurrando os corpos caídos sobre o dele, levantou-se como uma mola e sacou a adaga de bronze que carregava sob o avental de couro. Com um grito de guerra, avançou. Havia apenas seis inimigos terminando de limpar os corpos. O restante estava longe, carregando o saque para sua aldeia. Apenas seis inimigos: o bastante para esmagar um homem comum, mas não o bastante para que ele se sentisse tentado a fugir. Os burus valorizavam a coragem acima de todo o resto. Com um grito de guerra, Ikon avançou.

 

Dois foram ao seu encontro. Ele notou que empunharam seus bastões com desajeito e berraram palavras engroladas, desconexas. Haviam consumido o vinho de palmeira que dos odres dos guerreiros burus e estavam completamente embrigados. Grande erro, congratulou-se Ikon.

 

— Seus idiotas! — gritou um mais ao fundo. — Eu disse para verificarem todos os corpos!

 

O primeiro atacante embaraçou-se com um dos bastões e caiu. Ikon chutou-lhe a cabeça duas vezes: primeiro fez dentes voarem para fora da boca ensanguentada, depois garantiu que o guerreiro não se levantasse mais. Nesse ínterim, o segundo girou o bastão de ataque em sua direção. Com os sentidos entorpecidos, calculou mal o golpe e errou grosseiramente. Antes que pudesse se recompor, Ikon saltou para o lado e cravou a adaga afiada em seu pescoço. Removeu-a agilmente, agora banhada em sangue morno e escorregadio. Três outros partiram ao seu ataque, mas algo desviou sua atenção.

 

A luta entre a mulher capturada e seu captor se intensificava. Ao ver surgir dos mortos o guerreiro furioso, a jovem encheu-se de força com a possibilidade de sair viva. Enfiou os dedos nos olhos do guerreiro, que reagiu esmurrando seu rosto. Mas ela não caiu suavemente: agarrou-se furiosamente a ele, correndo as unhas pela carne de suas costas e suas pernas. Gritando, o homem tentou puxá-la novamente pelos cabelos, mas ela ergueu o braço e fechou os dedos em torno de seus testículos, com o aperto feroz de uma garra. O grito dele se transformou em um ruído agudo horripilante, semelhante aos guinchos de um macaco. Tentando livrar-se, agarrou o pulso da cativa, mas ela respondeu mordendo sua mão até que sangue jorrasse dela. Com a mão esquerda, ela seguia arranhando onde conseguia alcançar.

 

Nenhum dos parunás embriagados sabia se o certo seria fechar o cerco em torno do guerreiro ressuscitado ou atacar a cativa insubordinada, e essa indecisão lhes custou instantes preciosos. Um deles finalmente foi socorrer o amigo em apuros, e foi atingido nas costas por uma machadinha buru que Ikon encontrou no chão e atirou. Os dois posicionados diante dele ergueram os tacapes e arremeteram. O buru partiu para o ataque. Abaixando-se com destreza, por pouco não teve a cabeça esmagada pelo golpe combinado dos dois. Ele estava sóbrio, era rápido, e crescera como caçador e um lutador. Enquanto passava provocadoramente entre os dois guerreiros, abriu um talho superficial na barriga de um deles. O outro fitou horrorizado o fluxo vermelho saindo de seu parceiro, e não viu quando a adaga entrou em sua nuca peluda, penetrando até alcançar ossos.

 

O último, com um corte suave mas alarmante no ventre, movia-se cautelosamente. Incapaz de remover a adaga do inimigo morto, Ikon catou uma lança partida do solo e preparou-se para arremessa-la. O paruná vira seu aliado morrer pelo arremesso da machadinha, vira quatro dos seus serem mortos sem que um único ferimento fosse infligido ao inimigo. Com a alma despedaçada pelo medo, largou seus bastões e pôs-se a correr. Ikon arremessou o toco de lança. A longa ponta de bronze com quatro flanges entrou pelas costas e saiu pelo peito, tal foi a força do arremesso. Em sua terra natal, Ikon estava habituado a lancear bisões. O guerreiro paruná desabou com um ruído oco na areia, a boca abrindo e fechando como um fantoche macabro.

 

Ikon então voltou-se para a luta mais selvagem de todas. A mulher conseguira derrubar o guerreiro invasor no chão, mordendo-o como um lobo, ainda arrancando filetes de sangue com as unhas da mão esquerda, ainda esmagando e puxando seus bagos com a mão direita, como se quisesse separá-los de seu corpo. O homem tentava revidar, mas seus golpes eram cada vez mais fracos. Saliva escapava pelos cantos da boca, lágrimas cascateavam pelos olhos injetados e sua voz era incapaz de tecer um grito, reduzida a um fiapo de murmúrio patético, quase infantil. O vigor escapava de seu corpo. Ikon chutou um machado na direção dos dois.

 

— Acabe com ele.

 

— Não — respondeu ela. — Quero que ele sofra. Quero que ele sinta a dor que ele me faria sentir.

 

Então Ikon esperou. Aguardou que ela continuasse a expulsar a vida do corpo do guerreiro da forma mais animalesca: esmagando-o, arranhando-o, arrancando pedaços com os dentes e as mãos. Para matar apenas aquele homem, ela levou o triplo do tempo que ele levara para matar os outros cinco.

 

— Terminou com ele? — perguntou o buru quando a mulher caminhou em sua direção com os braços, a boca e a barriga rebocados de sangue.

 

— Não. Ele ainda está tremendo e pedindo ajuda. Mas é melhor que as gaivotas e os urubus olhem para ele e ainda sejam capazes de reconhecê-lo como comida.

 

— Eu deveria levá-la comigo. O Senhor da Planície e das Colinas jurou defender essa aldeia. Me mandou aqui para isso. E você é tudo que restou da casa de Úho.

 

— Você já me defendeu, buru. Estou viva por sua causa e você por causa de mim. Mas por que eu iria com você? Para passar o resto da vida como um pássaro de estimação em uma gaiola? Como se fosse uma coisinha diferente, divertida de olhar e digna de pena? Não, eu vou para Táa, onde vivem os parentes de meu falecido marido. Eles buscarão vingança pelo que houve contra a casa de Úho.

 

— Eu a acompanharei até lá, então, paruná.

 

— Não desistiu de seu “dever”, buru? Você luta bem, mas deve ter medo de morrer ao andar por essas praias.

Ikon suspirou, removeu a luva de couro de veado e aproximou a mão do rosto da mulher paruná. Ela o encarou com estranhamento. Reparou que, apesar de completamente desprovido de pelos e um tanto alto e magro para o seu gosto, o estrangeiro era moderadamente bonito e charmoso.

 

— Morda — disse ele, movendo a mão sutilmente. — Morda como você mordeu aquele pobre monte de carne empilhado ali.

 

Desafiada, a jovem cravou os dentes nos dedos de Ikon, mas não sentiu o fluxo morno onde deveria sentir. Quando sua mandíbula já estava doendo, soltou e viu que, embora a pele apresentasse a marca de seus dentes, não havia se rompido em parte nenhuma. Ele movimentou os dedos rapidamente para indicar que nenhum dano havia sido feito a seus ossos e nervos. Ela recuou dois passos. Sabia de histórias sobre os bóhu, os homens santos de Buru, e uma dessas histórias tratava de como estes magos eram capazes de fechar o corpo de um homem para qualquer forma de dano físico. Dizia-se que o preço cobrado por esse sortilégio era sempre muito elevado.

 

— Você sabe, não é? — perguntou ele, vestindo a luva novamente, como se lesse os pensamentos da mulher. — Eu tenho o corpo fechado. Por vinte anos eu lutei pelo rei e por senhores subordinados a ele, ganhei fama e riquezas. Cheguei a esquecer que um dia precisaria pagar por tudo isso. Hoje os deuses das nove nações exigiram uma retribuição. Perdi cada um de meus companheiros de armas, muitos deles homens que conheço desde a infância, e voltarei para meu rei como um coitado que não cumpriu sua missão.

 

Por um instante, a mulher pensou em se oferecer para acompanhá-lo de volta a Buru por pura pena, a fim de que a jornada dele não tivesse sido um fracasso total. Logo entendeu, porém, que aquele era um homem endividado com os deuses, e ela não deveria ficar entre ele e seus credores. E além disso, ela queria ir a Táa, queria conclamar os guerreiros dela a derramarem o sangue da tribo de Gehú, os responsáveis por aquele massacre. Queria fazer com cada homem de Gehú o que fizera àquele que tentara ser seu algoz.

 

Era apenas um dia de marcha até Táa. Lá, Ikon foi celebrado como um bravo guerreiro e um amigo da tribo, e lhe foi permitido passar a noite, mas seu sono foi atormentado por visões do passado. Acordaria suado, trêmulo, sentido cada fibra do corpo arder e congelar ao mesmo tempo.

 

***

 

— Está certo disso, menino? — perguntou o velho. Era um homem de peles flácidas e cara enrugada, empoeirado e coberto de cicatrizes. Vestia apenas um manto velho e carcomido que sequer cobria a masculinidade ressequida pela velhice.

 

Os vultos atrás dele riram. Eram três mulheres igualmente idosas, igualmente maltrapilhas, sujas e machucadas, com cabeleiras desgrenhadas, braços secos, caras chupadas e seios esvaziados e pendulares. Por alguma razão, homens santos sempre atraíam a companhia de muitas mulheres, e a maioria delas os acompanhavam até sua morte.

 

— Sim, senhor — respondeu o garoto. Tinha apenas quatorze anos, mas estava decidido.

 

— Está bem — disse o velho homem santo, com um aceno. Virou-se para uma das idosas e disse: — Vamos!

 

A idosa se aproximou dele e ajoelhou-se ao seu lado. Segurava um longo espinho de cacto e um pedaço de papel de casca de árvore. Depositou estes instrumentos mágicos no solo e começou a acariciar o rosto juvenil do garoto. Ela tentava ser terna, mas seus dedos magros, tortos e calejados terminavam em unhas grossas e mal aparadas, que arranhavam a pele.

 

— Então, querido. Você ouviu a explicação do homem santo. Preciso do seu sangue, para satisfazer o deus, uma picadinha só. — O menino olhou para o longo espinho e suspeitou que a picada não seria tão suave quanto ela sugeria.

 

— Eu sei — disse ele, tentando parecer corajoso. — Só uma picadinha.

 

— Que bom. Então, onde será? — disse, ela, segurando o espinho assustador. — Na língua ou no pinto?

 

O garoto engoliu em seco. Tentou não pensar na dor.

 

— Faz diferença?

 

A velha riu, ou pelo menos pareceu rir. O ruído que saía da garganta assemelhava-se demais ao crocitar de uma gralha.

 

— Homens... sempre tão temerosos por suas partes miúdas... Veja isso — disse ela, puxando os trapos com que se cobria, e exibindo inúmeras cicatrizes de cortes e furos na pele dos seios. — Algumas partes do corpo são mais sagradas que outras, portanto o sangue que sai delas é mais valorizado pelos deuses. O sangue que sai daqui — disse, apontando para a boca dele — é bem poderoso, porque nossa fala é o que nos faz únicos aos olhos de Parunutua, Ekotkre, Tuahu, Pem’kahe e todos os outros deuses, mas o sangue que pulsa aqui — disse, apontando para sua virilha — é o que te faz homem, e oferece-lo deixará claro para todos eles que você quer essa mágica de todo coração.

 

O garoto olhou para ela nervoso.

 

— Então eu quero dar meus dois sangues aos deuses. Os dois mais importantes.

 

Ela sorriu maliciosamente. Com um aceno de cabeça, chamou as outras duas velhas. Como se fosse uma coreografia planejada, uma manteve os braços do menino seguros às suas costas, enquanto a outra moía algumas folhas, grãos e pimentas secas entre os dedos, misturando tudo em uma tigela com água e hidromel. A primeira velha desamarrou o cordão de sua tanga, fazendo cair o pano situado entre as pernas, e começou a lavar o membro do menino com a infusão da tigela. Enquanto isso, aquela que preparara a mistura lavava sua boca, esfregando meticulosamente sua língua e seus dentes com uma vareta macia e aromática. Ele sentiu as duas partes do corpo arderem a congelarem ao mesmo tempo, mas manteve a postura corajosa. As velhas riram ao ver que, não obstante a carranca, o franzir da testa e o morder dos lábios, os olhos do menino brilhavam, prestes a se encherem de lágrimas ardidas.

 

Cada uma das idosas deu uma agulhada. Primeiro a parte que o fazia humano, depois a parte que o fazia homem. Gotejaram os dois sangues no pedaço de papel, que foi dobrado e entregue ao homem santo. Este havia acendido um fogareiro no qual queimava um incenso muito precioso, trazido de terras distantes. Tomando o papel ensanguentado, atirou-o no fogo e viu-o consumir-se. Ergueu o fogareiro para o alto e recitou uma canção. As velhas o acompanhavam na cantoria. A fumaça escapava pelas janelas altas do recinto de tijolos crus.

Então a dor cessou. Ainda restava a ardência da infusão purificadora, mas a dor das lacerações desaparecera. O menino examinou sua glande e viu que estava intacta. Também pressionou a língua contra o céu da boca várias vezes, mas não sentiu gosto de sangue. Apalpou-a: não havia furo, embora ele tivesse certeza de que a agulha a atravessara por completo.

 

A mágica funcionara. Tuahu, deus do movimento, da caça, da pesca, da guerra e da fúria do trovão estava com ele. Seu corpo estava fechado para todo dano.

 

***

 

Ikon acordou dolorido. Comeu um pouco do ensopado de peixe e concha-rainha que seus anfitriões ofereceram, tomou para si uma lança nova, uma adaga e um escudo, e partiu. O caminho até Cajueiros, capital dos burus e trono de seu rei, era longo. E ele devia satisfações ao seu rei.

 

Marchando rapidamente, sentiu um ligeiro alivio ao cruzar o braço do grande rio que o separava de sua ilha natal. Embora as duas fossem filhas do Delta, separadas por um canal estreito e pouco profundo, Paruná e Buru não podiam ser mais diferentes. A terra de bárbaros era inteira plana, arenosa, coberta por pouca vegetação além de palmeiras e aloés, mais apropriada para caranguejos e conchas-rainhas do que homens. Buru, por outro lado, tinha três cordilheiras de colinas com vale abençoados por mananciais e bolsões de vegetação luxuriante. Mesmo o Caldeirão, a porção mais central da ilha, quente e seca, havia sido domada por homens persistentes, homens que irrigavam a terra, forçando-a a ser fértil, homens corriam pelas pastagens aos pés das colinas, caçando lagartos, cascavéis, bisões, tatus gigantes, palas selvagens e preguiças-de-chão.

 

Dois dias de marcha, à base de peixe seco e água, tentando não dormir. Fazendo o possível para fugir dos pesadelos. Não poderia suportar por muito tempo. Relaxado sob a sombra de um juazeiro, Ikon adormeceu.

 

***

 

Saindo da casa do homem santo, o garoto podia ver as chamas. Uma coluna de fumaça se erguia dos armazéns e das docas como um gigante maldito. O porto de Cajueiros estava queimando. Vestido com os trajes de couro de seu pai, folgados no corpo mirrado, foi até o curral da região em busca de uma pala grande o bastante para ele. Poucos burus dominavam a difícil arte da montaria. Soltou o animal de sua escolha e o trouxe até um lugar onde ele não prestaria tanta atenção à cacofonia e à fumaça. Sabia que precisava ganhar sua confiança antes de mais nada. Acariciou seu pescoço longo e lanoso, depois seu focinho comprido e delicado e suas orelhas felpudas. Ganhou sua confiança. Montou em um salto, virou o animal na direção da cidade e pressionou seus flancos com os pés, instigando-o a correr.

 

Piratas. Homens sedentos por sangue e por riqueza, eles vinham de longe para trazer o caos a uma das cidades mais lindas do mundo. Homens de Cabo Dente, ao noroeste, e marinheiros de Almas, ainda mais ao norte, furiosos, bem armados. Por isso que o garoto se submetera ao rito nefasto. Era o último homem de sua família, quando os inimigos mais mortais já vistos estavam às portas. Ele não podia fracassar.

 

E a coragem de Tuahu estava com ele. O espírito que movia os animais, o vento e o relâmpago possuía cada articulação de seu corpo. Não interessava que ele fosse um adolescente mirrado: puxou uma lança longa cravada em um corpo e partiu para o ataque. Ao vê-lo triunfal, escapando a toda flecha e lança que o inimigo lhe impunha, os burus em volta se encheram de coragem, e o seguiram. Mesmo quando sua montaria foi derrubada e morta, ele se ergueu e partiu contra inimigos maiores que ele. Três inimigos tentaram atingi-lo, e ele os matou, um de cada vez, sem receber um arranhão sequer. Logo, por toda aquela parte do porto ecoavam gritos de triunfo:

 

— Sigam o garoto! Sigam o filho de Akroro! O escudo de Tuahu está com ele!

 

Aterrorizados, os piratas recuavam para seus barcos ou para o centro do porto, onde suas forças também estavam sendo encurraladas. De seu lado, os burus formaram uma frente de batalha em cunha, e na extremidade estava o menino de corpo fechado.

 

— Joguem-nos ao mar! — gritou ele.

 

E com isso, os homens avançaram sem se importar com as baixas. Muitos burus caíam, mas outros vinham atrás para continuar a empurrar os piratas. Logo, estes se refugiavam em seus barcos, remando desesperadamente para fugir das flechas incendiárias que saíam das torres do porto.

 

Muitos heróis defenderam Cajueiros naquela noite, mas para os homens que serviam na porção oriental do porto, nenhum era maior que o pirralho guardado pela égide dourada de Tuahu.

 

***

 

Malditas lembranças. Tuahu levantou-se e tomou seu caminho de novo. Mas não ia mais para Cajueiros. Andava em círculos, em ziguezague, perdera o ânimo de alcançar seu destino.

 

— Onde você está? — disse para o horizonte. — Não acha que eu já cumpri meu dever?

 

— Fizemos um acordo. Acordos de sangue não se dissolvem facilmente. Você pensa que sua missão fracassada e a morte de seus amigos são o “preço”, não é? O preço cobrado pelo poder você pediu para defender sua família e sua cidade.

 

— E não é? Vinte anos não bastam? — Ikon virou-se. Mesmo com espírito destruído, assombrou-se diante de seu interlocutor: era uma fera de um tipo cada vez mais raro no Caldeirão. Tão alto quanto dois homens e empilhados e grande como uma casa, sua testa era protegida por placas rijas, placas que em seu dorso ligavam-se para formar uma carapaça maciça. Sua longa cauda terminava em um pesado martelo ósseo, certamente capaz de dispensar golpes poderosos.

 

— Eu tenho muitas formas, Ikon. Nem todas elas sabem tudo sobre tudo aquilo que eu ou os outros fazem do destino dos humanos. Sei apenas que, se há um preço a pagar, é a própria vida.

 

— Fiz um bom trabalho, senhor?

 

— Um excelente trabalho, Ikon.

 

— Então me liberte. Por favor, liberte-me.

 

— Você já é livre, Ikon. Veja.

 

O guerreiro então sentiu seu corpo ser tomado por um calor inesperado. Ao notar que sua boca se enchia de sangue, apalpou a língua: estava atravessada por um furo. Olhou para baixo e tirou o avental de couro: uma mancha vermelha se formava em sua tanga de algodão de algodão branco. Ele sorriu ao cair de costas no chão. Tantos foram os golpes dos quais ele se esquivara em todos aqueles anos, que a morte veio rápida e quase indolor. Os movimentos do vento e dos animais encobririam seu corpo com terra e rocha: uma última oferenda para Tuahu. E Cajueiros jamais saberia o que ocorrera ao menino do corpo fechado.

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